Este sábado o Portugal Fashion chega ao fim depois de cinco dias de um calendário com experiências de turismo, um summit focado nos empreendedores do mundo da moda, desfiles off location e apresentações de coleções variadas. É também a primeira vez que o formato é realizado no verão, com a promessa de regressar no próximo ano. Contudo, o evento teve — e ainda terá — de lidar com as dificuldades do financiamento, enquanto os designers parecem reencontrar os seus caminhos.
Desde 2016 até 2022, enquanto esteve em vigor o quadro comunitário Portugal 2020, a ANJE recebeu cerca de 20 milhões euros em fundos europeus, que financiaram cerca de 85% dos eventos realizados nesta altura. Entretanto os apoios extinguiram-se em outubro de 2022 e o quadro Portugal 2030 só começou no início de 2025. Portanto, entre 2022 e 2023 os eventos foram realizados com fundos da ANJE, apoios privados e públicos, como da Câmara do Porto. Em 2024 a organização não foi capaz sequer de realizar o certame. A atual candidatura, que previa um valor de quase 2 milhões de euros, está a ser destinada a pagar os eventos realizados anteriormente e prevê a realização de apenas uma semana da moda no Porto, a que acaba este sábado. O Portugal Fashion de 2026 ainda está “a ser trabalhado”, diz ao Observador a diretora do projeto, Mónica Neto, que acredita que a nova abordagem pode ser o caminho para uma maior independência do financiamento público.
Mas para que serve uma semana da moda única em julho? A responsável garante que o objetivo é “criar uma ligação entre indústria, criatividade e fazer isso sempre tendo em vista o negócio da internacionalização”, sem necessariamente ser um espaço que vai lançar novas tendências de moda ou apresentar coleções inéditas. De facto a maioria dos designers optou por coleções que já tinham sido apresentadas antes — ou em semanas da moda internacionais, como Miguel Vieira em Milão ou os Ernst W. Baker em Paris; ou ainda divulgadas em sessões de fotos, como David Catalán, que escolheu desfilar a coleção outono/inverno 2025 já tendo uma mais recente que levou a Milão e Paris; e houve quem preferisse mostrar a coleção de verão 2025 que já está em loja, como foi o caso de Maria Gambina. Entre os designers participantes, todos destacam a dificuldade que foi manter a divulgação das coleções no período de pausa. Para uma semana da moda anual, apostam na iniciativa como uma forma de fomentar o mercado e promover os seus trabalhos. De acordo com Mónica Neto, não houve negas, e as ausências justificam-se por designers que já não estão a produzir ou que tenham abraçado novos projetos profissionais.
Passaram-se quase dois anos sem a realização de nenhum evento presencial. Como é que estão a ver esse regresso?
Tudo aquilo que conseguimos concretizar no Douro, as imagens são fantásticas e o feedback da imprensa e de todos os convidados é muito bom. Acreditamos que este formato de Portugal Fashion Experience está a criar uma nova marca para o evento. Portanto, em termos de posicionamento daquilo que é um evento completamente diferenciado, que faz ruptura com o passado e que tem uma ambição muito estruturada a nível internacional, acreditamos que até sábado será aqui um sucesso e será uma vitória para nós termos conseguido alcançar este evento.
Considerando que o evento tem agora um maior envolvimento de outros sectores, qual seria o verdadeiro objetivo do Portugal Fashion?
Na verdade, o objetivo do Portugal Fashion desde o primeiro evento é criar uma ligação entre indústria, criatividade e fazer isso sempre tendo em vista o negócio da internacionalização. Desde o primeiro momento, o primeiro evento, com todas as top models internacionais, já tinha uma ambição global. Pouco tempo depois do primeiro evento no Porto, começamos a estar em semanas de moda internacionais.
Portanto, essa ligação estava sempre na nossa essência. Aquilo que na moda tem vindo a acontecer é que realmente todos temos que ir criando estratégias para nos adaptar e para conseguirmos transformar a nossa mensagem de acordo com o tempo, com os tempos. Vivemos um momento em que a experiência significa muito, em que a arte de saber fazer significa muito e Portugal tem isso muito bem marcado e isso tem a ver com identidade, tal como a moda tem a ver com identidade.
Nós acreditamos que Portugal Fashion é uma marca país, uma marca bandeira e, portanto, isto é, no fundo, uma nova fórmula para manter a essência daquilo que é uma plataforma de comunicação, de negócio e de internacionalização.
O formato mantém-se uma vez por ano nas próximas edições?
Sim, esse é um formato que nós queremos apresentar como sendo de para ficar. Acima de tudo porque nós acreditamos que estamos numa fase em que a sustentabilidade dos eventos é, de facto, muito pensada, muito ponderada por todas as marcas. Há marcas até com estratégias de apresentar numa estação, fisicamente, com desfile e ter outro tipo de evento na estação seguinte. O Portugal Fashion repensou muito durante este período o que é que fazia sentido, de que forma é que podia ter um impacto diferenciado, em que transformação de agenda é que teria que fazer para se adaptar mais àquele momento em que a mídia internacional podia ter disponibilidade para vir.
E o que é facto é que fomos percebendo que há grandes fashion weeks que serão sempre o centro e que concorrer com elas não faz sentido, até porque nós aproveitamos muito a visibilidade e a transformação que elas proporcionam às nossas marcas através do nosso roteiro internacional. E assim sendo, surgiu esta ideia de balançar o nosso roteiro internacional, voltar a tê-lo de uma forma sólida, levar as marcas que estão mais preparadas para essas semanas de moda e, em Portugal, ter um evento experiencial, forte, que também comunique de dentro para fora. Portanto, para nós, esta rotura em termos de conceito de fashion week é ambiciosa, é óbvio que sendo diferenciada pode ser sempre vista de vários pontos de vista, mas nós, neste momento, até do ponto de vista de manifesto de sustentabilidade que estamos a lançar também, faz-nos muito sentido.
E a data vai sempre trabalhar entre a Semana Masculina de Paris e antes da Haute Couture?
Exatamente, é a nossa janela. Sempre o fizemos, aliás. A data do Portugal Fashion era sempre duas semanas depois da Semana da Moda de Paris. Foi o maior desafio, encontrar no calendário uma data que fizesse sentido. Este é o momento em que se começam a apresentar as coleções de verão de 2026. Portanto, é um momento em que a maioria dos buyers também já está atenta às compras. É muito mais cedo que as semanas de mulher, onde muitas vezes já estão muitas compras feitas, até porque há marcas que começam a fazer vendas em resort e começam a estar também, mesmo sendo mulher, a estar nas semanas de homem a fazer showroom e a estimular a venda. O que nós sentíamos quando tínhamos evento em outubro é que estávamos muito na cauda desse calendário e que era muito menos efetivo o nosso impacto.
Portanto, nós acreditamos que esta data também pode ser uma data com mais oportunidades para trazer estes profissionais que procuram moda, que procuram eventos diferenciados, procuram conhecer a indústria por trás da moda e que podem aqui, se calhar, nesta janela temporal, ter uma oportunidade maior de vir a Portugal, de se deslocarem cá e de fazerem negócio cá.
Entretanto este ano os designers acabaram por mostrar coleções bastante distintas: alguns apresentaram outono/inverno 2025, outros primavera/verão 2026 e houve quem preferisse exibir peças que estão em loja neste momento. Com esta data as coleções não acabam por perder a coerência?
Este Portugal Fashion Experience, acima de tudo, tem um foco muito grande em ser, para os designers e para as marcas, útil em termos de sequência de negócio e de comunicação. E, portanto, se nesta janela temporal, para algumas marcas, faz sentido estar a comunicar o calendário de verão de 2026, porque é o que internacionalmente está mais ativo, nós aceitamos. Se para outras marcas, que estão também a apresentar internacionalmente, este momento em Portugal é de comunidade e de B2C, e preferem fazer já o inverno que vai entrar em loja em agosto, também aceitamos que assim seja. Porque para nós o Portugal Fashion Experience é isso, é conseguirmos passar uma mensagem do que há de melhor na moda portuguesa, do que há de melhor na identidade da nossa moda nacional e da nossa identidade como país que faz tanta diferença também no que é moda. E, sobretudo, também sermos uma plataforma que é efetiva e que tem sentido para a atividade das marcas e mostrar essa diversidade. Essa diversidade também é algo que nós valorizamos e que achamos que nos diferencia.
Sentiram que houve feedback positivo sobre este tema por parte dos designers?
Sem dúvida. Sentimos que no mercado da moda de autor, do luxo, são tantas as discussões que se têm tido acerca disso, acerca da crise no consumo, as mudanças de cadeira nos grandes diretores criativos, na verdade têm sempre por base este problema, é uma retração de consumo que é global. E com a digitalização, há uma constante atenção das marcas à necessidade de se adaptarem, de fazer diferente, de tentar antecipar crises e aquilo que nós sentimos é que todos os designers e, sobretudo, também todos os profissionais da área que vêm de fora nos estão a dar os parabéns pela estratégia e estão a encontrar um sentido nela, um propósito estratégico.
Entretanto alguns nomes habituais estão ausentes nesta edição, como Pedro Pedro, Huarte ou Alexandra Moura. Houve negas da parte de alguns designers em voltarem ao calendário com esta alteração?
Não, não, de todo. O Portugal Fashion Experience acontece numa altura em que faz convite e formula a todos os que estão ativos, aliás uma preocupação muito grande deste nosso Portugal Fashion Experience é cada vez mais ter aqui uma curadoria, uma boa seleção das marcas e também garantir que elas estão ativas, que estão no mercado, que estão a vender, que estão com as estratégias de comercialização e porque de facto se somos uma vez ao ano temos que estar aqui com uma bandeira, uma boa seleção, um bom catálogo das marcas que estão efetivamente a trabalhar, a trabalhar na sua marca, a trabalhar tudo aquilo que é o mercado nacional e também internacional, porque sendo uma vez ao ano nós também temos que ter uma curadoria muito mais apurada. Portanto, não, não houve negas, o que está a acontecer também muitas vezes é fruto do tempo, do mercado, ou seja, há criadores que entretanto decidiram parar, precisamente pelo contexto da moda, há outros que tiveram outros desafios, como o Huarte, que nos orgulha muito porque está na Adolfo Dominguez e é um desafio que também advém da notoriedade que ele teve no Portugal Fashion. A Alexandra Moura também está agora com um desafio bastante interessante e que também nos orgulha que é com a marca Paula, portanto, na verdade, há aqui várias coisas a acontecer e a justificar essas ausências, mas não, não tivemos nenhuma nega.
Em 2024 afirmaram que não era possível realizar o evento por falta de financiamento. Este ano está a ser possível por causa dos fundos comunitários do Portugal 2030, certo?
Sim, neste momento o Portugal Fashion tem uma candidatura aprovada que inclui este evento e inclui também um plano de ação internacional e outros projetos ligados aos jovens criadores, à sustentabilidade, à ligação também com a indústria, portanto, há uma base do evento que tem a ver com os fundos comunitários, mas há mais do que isso, também há um apoio do Turismo Portugal nesta iniciativa, neste programa complementar e de outros parceiros estratégicos, como a própria Câmara Municipal do Porto e alguns sponsors.
Quanto do evento é financiado pelos fundos?
Cerca de 40% dos fundos. Na verdade, nós já vínhamos reduzindo bastante a dependência em relação aos fundos comunitários, ou seja, mesmo a nossa candidatura já era feita sabendo sempre que nós estávamos a alavancar apenas metade do evento com apoio de fundos comunitários. A sustentabilidade financeira e a menor dependência desses fundos para nós tem sido um esforço que já vem acontecendo desde os últimos quatro anos, portanto, há uma base que é de missão pública e que nós entendemos que, de facto, para se fazer isto com um nível profissional é importante este apoio porque, no fundo, o Portugal Fashion faz serviço público pelos criadores e pela indústria portuguesa, mas nós temos consciência de que o evento tem que ser sustentável e não pode estar 100% dependente dessas fontes de financiamento.
Entretanto, entre 2022 e 2023, a Anje contraiu dívidas para a realização desses eventos, sem os fundos comunitários?
Nós fizemos três edições, uma sem financiamento, duas que, na verdade, tinham aqui já cabimento na candidatura que viesse a ser submetida, mas que implicou um adiantamento e aplicou um esforço de tesouraria considerável, é verdade. Então, agora, essa candidatura pagou essas edições 2023 e não há nenhuma dívida de edições anteriores.
Em entrevista anterior ao Público, a Mónica e o Carlos Carvalho (presidente da Anje) mencionaram que tiveram que devolver uma parte do fundo por uma “execução não tão positiva”. Os valores são referentes a qual candidatura?
São projetos antigos, ou seja, há um encerramento do quadro comunitário do 2020 para o 2030 e esse encerramento trouxe a conclusão de alguns processos que remontam a 2015, 16… Os períodos dos quadros comunitários são bastante alargados, portanto, a candidatura anterior foi de 2019 a 2020, os problemas com fundos remontam a bem mais cedo do que isso. Todo o projeto que nós vimos desenvolvendo a partir de 2019 está completamente saudável, foi auditado, foi bem executado e, portanto, não temos qualquer problema em relação a isso. Houve, de facto, para trás alguns projetos que não foram tão bem e, portanto, isso tudo também pesou aqui consideravelmente neste contexto de transição de quadro comunitário em que não havia nova candidatura e haver esse esforço de tesouraria de evolução, claro, também pesa.
A atual candidatura vai até quando?
Até fevereiro de 2026, portanto, esta candidatura abrange duas estações de internacionalização, desde junho deste ano até fevereiro do próximo ano e este evento nacional.
Então, o evento do ano que vem…
Está a ser trabalhado. Diria que a nossa expectativa enquanto associação é que o sucesso desta iniciativa e a forma como ela está também estruturada e alicerçada do ponto de vista de apoio seja o relançar de alguma estabilidade para a frente, que ainda não está garantida, mas que acreditamos que venha a ser possível. Acreditamos que há uma componente de financiamento público que ajuda a dar escala e que ajuda a competir, no fundo, com as grandes marcas internacionais, com os grandes grupos que estão a ativar em marketing, etc. Portanto, num setor tão exigente, esse financiamento público, também em termos de serviço público para apoio a novos criadores, é relevante. Mas o orçamento do Portugal Fashion não pode estar 100% dependente dele. E já não está.
O caso da investigação de Manuel Serrão afetou a forma de trabalhar ou a imagem da Anje?
Não, já não havia nenhuma ligação efetiva. De facto há um passado. O Manuel Serrão passou pela história da Anje, faz parte, mas neste momento não tem qualquer ligação. Portanto, esse processo lamentamos, mas não tem impacto.
2025-07-05T08:33:15Z